A contação de histórias faz parte da nossa existência, dos conhecimentos que foram passados de geração para geração.
Contos sobre Longevidade é um projeto para refletir sobre envelhecimento por meio de histórias do dia a dia.
A ideia do conto é conhecer sobre uma passagem de vida, uma fresta da jornada de alguém, que poderia ser a sua.
A Gerontóloga Tássia Chiarelli te conta o conto, para você recontá-lo a alguém.
Porque quem conta um conto, revela um ponto :)
Converse sobre longevidade.
Tudo começou com uma ida à farmácia. Enquanto eu estava submersa em meus pensamentos, a atendente do caixa me disse: "tenho dó dela" e olhou para fora da farmácia.
Entre o ir e vir de pessoas com passos rápidos, avistei a senhora na calçada que despertava comoção.
Enquanto olhávamos para ela, a atendente continuou: "ela sempre passa por aqui. Tenho medo de que alguém a empurre e que ela caia. Essa rua é muito movimentada".
Entendi as razões da atendente:
Enquanto todo mundo pegava o seu rumo com pressa e de maneira desordenada, Dona Preciosa, que aparentava ter uns 85 anos de idade, agia de modo contrário. Com passos lentos, corpo pequeno e curvado, utilizando seu andador com rodas, ela ia no seu tempo. Algumas vezes parava por conta da condição da calçada que não deixava seu andador deslizar. Nesses momentos, depois de algumas tentativas frustadas, alguém notava a situação e se dispunha a ajudá-la.
Não demorou muito e meu tempo no caixa da farmácia chegou ao fim. Me despedi da gentil atendente e peguei o meu rumo com pressa e de maneira desordenada, em sentido contrário à Dona Preciosa.
Mas aquela frase ainda ecoava na minha mente: "tenho dó dela". Entre a pressa e a presença, escolhi a segunda opção. Dei meia volta e fui ao sentido de Dona Preciosa.
Ela continuava seu caminho na tranquilidade que falta em muita gente. Não demorou muito para eu alcançá-la: "com licença, a senhora precisa de ajuda?"
Ela parou, me olhou e disse em tom alegre: "eu lembro de você! Você já me ajudou outra vez." Mesmo com máscara, eu conseguia imaginar o sorriso que ela esboçava. Não me recordo de já ter tido contato anterior com ela. Mas na correria do dia a dia tem tanto momento que passa despercebido, que fiquei em dúvida em qual memória confiar.
Me inclinei para ficar mais próxima da sua altura e continuamos a prosa.
Ela me disse que não precisava de ajuda. De agora em diante seguiria caminho sem dificuldade, porque a calçada era mais "lisinha" sem buracos no caminho. Perguntei se ela morava sozinha: "moro com minha sobrinha. Ela trabalha o dia inteiro. Então gosto de ir ao mercado antes, porque ela não tem paciência em mercado, faz tudo rapidinho. Eu faço no meu tempo." E me mostrou as sacolas que ela guardava na cesta do andador.
Em poucos minutos de papo, Dona Preciosa despertou minha admiração. Ela ia contra ao imposto: calçadas apertadas e esburacadas, obstáculos, barreiras que limitam quem tem dificuldade de locomoção em conseguir circular. Quantas pessoas com andador vemos circulando pelas ruas? Mas elas existem. Dona Preciosa existe.
Nos despedimos. Cada uma foi para o seu lado, no seu ritmo, no seu movimento. Terminei o meu dia mais feliz. Havia aproveitado a preciosidade do tempo, com quem tem a coragem de mostrar que existe.
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Título do conto: “Por onde anda Dona Preciosa?”
Autoria: Tássia Chiarelli